Comenius

por Rogério Ribeiro Cardoso
8 de maio de 2011 às 15h19
 

Logo no primeiro ano do curso de Pedagogia, em 2003, me deparei com a fascinante figura de Comenius (28 de março de 1592 – 15 de Novembro de 1670)… e foi amor à primeira vista! Seu ideal de educação estava à frente de seu tempo, e mesmo hoje se mostra ainda bastante sofisticado, tanto que somente com as novas tecnologias da educação, que envolvem as tecnologias da informação e comunicação, seu ideal educacional começa a se concretizar.

Quando me “encontrei” com Comenius, tive a oportunidade de escrever o texto abaixo, que compartilho com você…

“Nosso primeiro desejo é que todos os homens sejam educados plenamente, em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens, reunidos e individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento elevado e humilde – numa palavra, qualquer um cujo destino é ter nascido ser humano; de forma que afinal toda a espécie humana seja educada, homens de todas as idades, todas as condições, de ambos os sexos e de todas as nações. Nosso segundo desejo é que todo homem seja educado integralmente, formado corretamente, não num objeto particular ou em alguns objetos ou mesmo em muitos, mas em tudo o que aperfeiçoa a espécie humana; para que ele seja capaz de saber a verdade e não seja iludido pelo que é falso; para amar o bem e não ser seduzido pelo mal; para fazer o que deve ser feito e não permitir o que deve ser evitado; para falar sabiamente sobre tudo, com qualquer um, quando necessário, e não ser estúpido em nenhum assunto e finalmente para lidar com as coisas, com os homens e com Deus, em todos os sentidos, racionalmente e não precipitadamente e assim nunca se afastando da meta da felicidade.”

Johan Amos Comenius (Pampædia)
(Covello, 1999, p. 5)

Komensky (2)

Ideal Pedagógico

Quanto às principais idéias pedagógicas de Comenius, convém destacar que ele foi, sobretudo, um grande sistematizador das experiências e teorias educacionais existentes na época, sem qualquer preconceito (gregos, romanos, jesuítas), para construir uma base científica da pedagogia. (Araújo, 1992)

Para Comenius, a educação tem maior eficácia antes da corrupção da inteligência. Por conta disso, seu ideal pedagógico tem na infância um foco primordial. “Uma árvore, por maior que seja, está toda concentrada ou no caroço dos seus frutos, ou nos rebentos dos ramos mais altos” (Covello, 1999, p. 31). Vê-se que ele tira muitas lições da própria natureza, e isso estará presente em toda a sua obra. Propõe, Comenius, a reforma da Escola, talvez até mesmo por estar impressionado não somente pelos ineficientes métodos de ensino da época, mas também pela inconseqüência da guerra:

Tendo-se-me apresentado a ocasião de toda a parte, pus-me a ler os livros desses escritores; e se dissesse quanto prazer experimentei e como foram grandemente aliviadas as dores em mim provocadas pela ruína da minha pátria e pelo triste estado de toda a Germânia, ninguém me acreditaria. Comecei, na verdade, a esperar que a Providência divina não fazia coincidir em vão todos esses infortúnios, uma vez que, à ruína das velhas escolas correspondia, ao mesmo tempo, a eclosão de escolas novas no quadro de projectos novos. Com efeito, quem projecta construir um novo edifício começa habitualmente por aplanar o terreno, indo até à demolição do velho edifício, pouco cômodo e a ameaçar ruína. (Coménio, 1976, p. 49)

“Na educação comeniana, a união com Deus é o alvo para ser atingido, porque do contrário, o que se aprende, segundo Comenius não passa de vã jornada, um exercício de mera vaidade” (Covello, 1999, p. 49).  Deixa isso de forma clara em O labirinto do mundo e o paraíso do coração, sua grande obra mística. Comenius introduz o teatro como recurso didático, quando lecionava em Leszno (1628). Época também em que conclui a Didática Checa. Escreve também o Guia da escola materna, ressaltando o papel das mães e das amas e do brinquedo no processo de educação, dizia ele: “A inatividade é mais prejudicial à mente e ao corpo do que qualquer coisa em que elas possam estar ocupadas.” (Covello, 1999, p. 52).

Anos depois, traduz a Didática Checa para o latim, afim de que pudesse servir a todos os povos. O livro toma o nome de Didática Magna. É na Didática Magna que Comenius lança a idéia de sua pansofia, ou o saber universal. “Trata-se de empregar a educação como instrumento de transformação do mundo” (Covello, 1999, p. 55). O protótipo dessa educação é o próprio Cristo. Em Novíssimo método das línguas, Comenius ressalta a importância do ensino das línguas. Neste e em Orbis pictus sensuallium, a ilustração tem caráter revolucionário, visto que na época não existiam livros ilustrados. Aliás, Comenius era um excelente desenhista. “A gravura tem, segundo Comenius, tríplice utilidade: auxilia a reter a noção aprendida, pois ‘a sensação recebida pelos olhos guardamos mais do que a recebida pela audição’; estimula a inteligência infantil a procurar deleite nos livros, e facilita a aprendizagem da leitura.” (Covello, 1999, p. 90)

Enfim, os ideais pedagógicos de Comenius têm um caráter de universalidade.

Sua visão de homem, de mundo e seu método

Eis as concepções de Comenius:

I.O homem é a mais alta, a mais absoluta e a mais excelente das criaturas. II. O fim último do homem está fora desta vida. III. Esta vida não é senão uma preparação para a vida eterna. IV. Os graus de preparação para a eternidade são três: conhecermo-nos a nós mesmos (e connosco todas as coisas), governarmo-nos e dirigirmo-nos para Deus. V. As sementes destas três coisas (da instrução, da moral e da religião) são postas dentro de nós pela natureza. VI. O homem tem necessidade de ser formado para que se torne homem. VII. A formação do homem faz-se com muita facilidade na primeira idade, e chego a dizer que não pode fazer-se senão nessa idade. VIII. É necessário, ao mesmo tempo, formar a juventude e abrir escolas. IX. Toda a juventude de ambos os sexos deve ser enviada às escolas. X. Nas escolas, a formação deve ser universal. (…) XII. As escolas podem ser reformadas. (…) XIV. A ordem perfeita da escola deve ir buscar-se à natureza. (…) XXVII. As instituições escolares devem ser de quatro graus, em conformidade com a idade e com o aproveitamento. (…) (Comenius, 1976, p. 77)

Comenius tinha uma fé inabalável na criatura humana, para ele o homem traz por natureza as sementes da ciência, da moral e da piedade e todo homem, com um mínimo de esforço cerebral, é capaz de aprender tudo, desde que lhe seja interessante e estimulante.

Comenius aponta como necessária a constante busca do desenvolvimento do indivíduo e do grupo, do conhecimento de si mesmo com vista a uma sociedade melhor, assim como deve haver a solidez moral que pode ser conseguida por meio da educação. Para ele, didática é ao mesmo tempo processo e tratado. Prática e teoria. É tanto o ato de ensinar como a arte de ensinar. A natureza e sua imitação são os fundamentos da didática de Comenius. O mundo é uma escola. A idéia antes da palavra, o exemplo antes da regra são pressupostos da didática comeniana.

Em sua Didática, Comenius sugere que todos os alunos de um mesmo nível sejam confiados a um mesmo professor durante todo o período letivo, para que não haja lacunas e interrupções no processo de ensino e aprendizagem. Na época era comum um aluno (ou um punhado) para cada professor. Propõe que estudando juntos uns auxiliem os outros.

Não só afirmo que é possível que um só professor ensine algumas centenas de alunos, mas sustento que deve ser assim, pois isso é muito vantajoso para o professor e para os alunos. (…) quanto mais numerosos forem os alunos, tanto maior prazer e utilidade sentirão (…), uma vez que se estimularão e se ajudarão mùtuamente, pois também esta idade sente os estímulos da emulação. (Coménio, 1976, p. 280)

Prevê períodos de repouso para não sobrecarregar os alunos como também diferentes níveis de ensino.

Comenius sugere quatro níveis escolares: de 0 a 6 anos – escola materna (jardim de infância); de 6 a 12 anos – escola comum (primária); de 12 a 18 anos – escola latina (ginásio); de 18 a 24 anos – academia (universidade) mais viagens e excursões. Para cada nível, ele dá um adequado plano de ensino (currículo) e caracteriza os métodos apropriados a serem adotados no processo de construção do conhecimento; clama pelo estabelecimento e pela organização de escolas que permitam o ingresso de jovens de ambos os sexos, sem qualquer distinção. Os seus métodos ativos incentivavam ao máximo o interesse dos alunos. Ao misturar teoria com a prática, Comenius segue os princípios da educação utilitária, tão típica entre os protestantes. (Araújo, 1992)

Comenius acreditava ser necessário, possível e fácil educar a todos para a sua plenitude e os meios para isso seriam as escolas, os livros e os professores universais. Afirmava que todos deveriam ser educados em tudo para a verdade, para esta vida e para a vida futura.

Poderíamos assim resumir brevemente os grandes princípios pedagógicos de Comenius: respeitar em tudo a natureza, confiando na sabedoria imanente das coisas, pela presença divina em toda parte, inclusive no ser humano; abolir punições, métodos coercitivos e autoritários, ganhando ao invés a confiança da criança e do jovem, num processo amistoso de aprendizagem e estimulando sua vontade de aprender; tornar o ensino ativo, sensorial e concreto, na medida do possível, mas sempre claro, conectando com a realidade e coerente com a unidade do universo; apelar para a racionalidade humana, para que ela possa apreender a inteligibilidade das coisas, mas despertando ao mesmo tempo as virtudes morais que o ser já tem em potencialidade (como anunciava Sócrates e como fazia Jesus); educar para a tolerância religiosa, para a paz universal, formando o homem para que ele atue conscientemente no mundo, fazendo-o melhor e, com isso, garanta a sua felicidade individual e coletiva, preparando-se ao mesmo tempo para a eternidade. (Incontri, 2001, f. 161)

Em sua obra Consulta universal sobre a reforma das coisas humanas (1645), Comenius propõe: a) Panegersia – Despertar universal; b) Panaugia – Iluminação universal; c) Pansofia – Sabedoria universal; d) Pampaedia – Educação universal; e) Panglotia – Língua universal; f) Panortosia – Reforma universal; e) Pannutesia – Exortação universal.

Podemos perceber que Comenius propõem a criação de um idioma universal (panglotia), para resolver o problema da comunicação entre os povos. Traça as diretrizes de uma nova sociedade, uma nova ciência e uma nova religião, unindo cultura, política, ciência e religião (panortosia). Idealiza três organismos internacionais: O Colégio das Luzes para supervisionar a produção de livros e o progresso da educação e da cultura em todo o mundo e para o desenvolvimento da língua universal; A Corte da Paz para administrar a justiça em nível internacional e evitar a guerra e O Consistório Mundial afim de unir todas as religiões numa só. Hoje temos o Esperanto como língua internacional, a UNESCO como órgão educacional mundial e a ONU para garantir (ou tentar garantir!) a justiça e a paz no mundo. Utilizamos conceitos que parecem novos como educação permanente, democratização do ensino, aprendizagem global, diferenças individuais, condições apropriadas para a aprendizagem, coisas que já se encontravam nas obras de Comenius há quase quatro séculos. Porém, nem todas as idéias de Comenius foram postas em prática ao longo dos séculos. Vê-se, então, que ele não foi simplesmente um homem à frente do seu tempo, ele foi um homem à frente do nosso tempo!

Finalidade da Educação

Tudo a todos, sem distinção ou preconceito, abolição de castigos, escola humanista e ativa, aprendizagem global e estimulante.

A proposta pedagógica de Comenius se dirige à razão humana, idealiza a formação de homens sábios na mente, prudente nas ações e piedosos no coração, homens críticos e pesquisadores do universo, com uma visão global das coisas. Pretende que o homem deva ser educado com vistas à eternidade, pois, sendo espírito imortal, sua educação deve transcender a mera realização terrena.

Muitos teóricos, ao abordarem Comenius ou ao assumirem alguns dos seus preceitos, acabam por deixar em segundo plano o seu lado metafísico e espiritual, como nos afirma Dora Incontri:

Apenas Comenius assumia claramente os fundamentos metafísicos de seu projeto e de suas propostas práticas. E a coerência que existe entre uma coisa e outra demonstra que é ingenuidade acreditar em liberdade do homem, educação libertadora e esperança de paz coletiva sem tais fundamentos. E é por isso também que os pósmodernos acabam por abolir tudo ao mesmo tempo.” (2001, f. 161-162)

Partindo da “nadificação” do ser, ou seja, do princípio da mortalidade do homem e sua redução ao nada, não faz sentido falar em Pedagogia Comeniana, nem tão pouco em paz, solidariedade, liberdade ou esperança. Comenius, enfim, há quase quatrocentos anos, propunha a educação do Homem Integral com vistas ao Ser Consciente.

Um dia, chegaremos lá…

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Bohmila. A Atualidade do Pensamento de Jan Amos Comenius. In: Temas em Educação, João Pessoa, n. 2, 1992. ceted.ce.ufpb.br/ppge/revista/rev2/painel 01.pdf. Acesso em: 6 jun 2003.

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. 3 ed. São Paulo: Unesp, 1999.

COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna: Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976.

COVELLO, Sergio Carlos. Comenius: a Construção da Pedagogia. São Paulo: Editora Comenius, 1999.

INCONTRI, Dora. A Crise do Saber e os Clássicos da Educação. In: Revista Internacional d’Humanitats, n. 6, 2003. www.hottopos.com/rih6. Acesso em: 6 jun 2003.

INCONTRI, Dora. O Projeto Comenius. In: ______. Pedagogia Espírita: um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas. 2001. 340 f. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

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