A Fábula dos Porcos Assados

Quando falamos em mudanças, qualquer que seja ela, em qualquer ambiente com muitas pessoas envolvidas, o obstáculo mais comum me parece ser o medo de mudar o “sistema”. Normalmente, do ponto de vista puramente lógico, as mudanças são simples, tão simples que dão medo, pois acabam descomplicando o que tanto tempo levou para ficar complicado!

Isso acontece quando se quer fazer reformas em empresas, em comunidades, no sistema tributário, no sistema político… Mas nas escolas… ah! nas escolas… as mudanças são leeeentas de dar dó!

Apenas para exemplificar e suscitar a reflexão, reproduzo abaixo uma conhecida fábula chamada “A Fábula dos Porcos Assados”. De acordo com o professor Marcos Cintra, a tal fábula “parece ter sido uma adaptação de texto traduzido por L. Gualazzi, de artigo publicado em JUICIO A LA ESCUELA, Cirigliano, Forcade Tilich, Editorial Humanista, Buenos Aires, 1976 e utilizado em encontros de capacitação dos dirigentes de escolas publicas por ocasião da implantação dos Guias Curriculares no Estado de São Paulo”.

Sem mais, eis a fábula:


A Fábula dos Porcos Assados

Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque onde havia alguns porcos, que foram assados pelo fogo.

Os homens, acostumados a comer carne crua, experimentaram e acharam deliciosa a carne assada. A partir daí, toda a vez que queriam comer porco assado, incendiavam um bosque, até que descobriram um novo método.

Mas o que quero contar é o que aconteceu quando tentaram mudar o SISTEMA para implantar um novo. Fazia tempo que as coisas não iam muito bem: às vezes os animais ficavam queimados demais ou parcialmente crus. O processo preocupava muito a todos, porque se o SISTEMA falhava, as perdas ocasionadas eram muito grandes – milhões eram os que se alimentavam de carne assada e também milhões eram os que se ocupavam da tarefa de assá-los. Portanto o SISTEMA simplesmente não podia falhar. Mas, curiosamente, quanto mais crescia a escala do processo, tanto mais parecia falhar e tanto maiores eram as perdas causadas.

Em razão das inúmeras deficiências, aumentavam as queixas. Já era um clamor geral a necessidade de se reformar profundamente o SISTEMA. Congressos, seminários, conferências passaram a ser realizadas anualmente para buscar uma solução. Mas parece que não acertavam o melhoramento do mecanismo. Assim, no ano seguinte repetiam-se os congressos, seminários, conferências.

As causas do fracasso do SISTEMA, segundo os especialistas, eram atribuídas à indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam, ou a inconstante natureza do fogo, tão difícil de controlar, ou ainda às árvores, excessivamente verdes, a umidade da terra, ou ao serviço de informações meteorológicas, que não acertava o lugar, o momento e a quantidade das chuvas…

As causas eram, como se vê, difíceis de determinar na verdade; o sistema para assar porcos era muito complexo. Fora montada uma grande estrutura: maquinaria diversificada; indivíduos especializados (incendiadores da Zona Norte, da Zona Oeste etc., incendiadores noturnos e diurnos – com especialização matutino e vespertino – incendiador de verão, inverno etc.). Havia especialista também em ventos – os anemotecnicos. Havia um diretor geral de Assentamento e Alimentação, ainda um diretor de Técnicas Ígneas (com seu Conselho Geral de Assessores), um Administrador Geral de Reflorestamento, uma Comissão Nacional de Treinamento Profissional em Porcologia, um Instituto Superior de Cultura e Técnicas Alimentícias (ISCUTA) e o Bureau Orientador de Reforma Ignecooperativas.

Havia sido projetada e encontrava-se em plena atividade a formação de bosques e selvas, de acordo com as mais recentes técnicas de implantação – utilizando-se regiões de baixa umidade e onde os ventos não soprariam mais que três horas seguidas.

Eram milhões de pessoas trabalhando na preparação dos bosques, que logo seriam incendiados. Havia especialistas estrangeiros estudando a importação de melhores árvores e sementes, fogo mais potente etc. Havia grandes instalações para manter os porcos antes do incêndio, além de mecanismos para deixá-los sair apenas no momento oportuno.

Foram formados professores especializados na construção destas instalações. Pesquisadores trabalhavam para as universidades que preparavam os professores especializados na construção das instalações para porcos; fundações apoiavam os pesquisadores que trabalhavam para as universidades que preparavam os professores especializados na construção das instalações de porcos etc.

As soluções que os congressos sugeriam eram, por exemplo, aplicar triangularmente o fogo depois de atingida determinada velocidade do vento, soltar os porcos 15 minutos antes que o incêndio médio da floresta atingisse 47 graus, posicionar ventiladores gigantes em direção oposta à do vento, de forma a direcionar o fogo etc. Não é preciso dizer que poucos especialistas estavam de acordo entre si, e que cada um embasava suas idéias em dados e pesquisas específicos.

Um dia, um incendiador categoria AB/SODM-VCH (ou seja, um Acendedor de Bosques especializado em Sudoeste Diurno, Matutino, com bacharelado em Verão Chuvoso), chamado João Bom-Senso, resolveu dizer que o sistema era muito fácil de ser resolvido – bastava primeiramente matar o porco escolhido, limpando e cortando adequadamente o animal, colocando-o então sobre uma armação metálica sobre brasas, até que o efeito do calor, e não as chamas, assasse a carne.

Tendo sido informado sobre as idéias do funcionário, o diretor Geral de Assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e depois de ouvi-lo pacientemente, disse-lhe:

– Tudo o que o senhor disse está muito bem, mas não funciona na prática. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotecnicos, caso viéssemos a aplicar a sua teoria? Onde seria empregado todo o conhecimento dos acendedores de diversas especialidades?

– Não sei – disse João.

– E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos, com suas máquinas purificadoras de ar?

– Não sei.

– E os anemotecnicos que levaram anos especializando-se no exterior e cuja formação custou tanto dinheiro ao país? Vou mandá-los limpar porquinhos? E os conferencistas e estudiosos que, ano após ano tem trabalhado no Programa de Reforma e Melhoramentos? Que faço com eles, se a sua solução é para resolver tudo? Hein?

– Não sei – repetiu João, encabulado.

– O senhor percebe que agora a sua idéia não vem ao encontro daquilo que necessitamos? O senhor não vê que, se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito tempo atrás? O senhor com certeza compreende que eu não posso simplesmente convocar os anemotecnicos e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas! O que o senhor espera que eu faca com os quilômetros e quilômetros de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos nem tem folhas para dar sombra? Vamos, diga-me.

– Não sei, não, senhor.

– Diga-me, nossos três engenheiros em Porcopirotecnia, o senhor não considera que sejam personalidades científicas do mais extraordinário valor?

– Sim, parece que sim.

– Pois então. O simples fato de possuirmos valiosos engenheiros em Porcopirotecnia indica que nosso sistema é muito bom. O que faria com indivíduos tão importantes para o país?

– Não sei.

– Viu? O senhor tem que trazer soluções para certos problemas específicos, por exemplo, como melhorar as anemotecnicas atualmente utilizadas, como obter mais rapidamente acendedores de Oeste (nossa maior carência), como construir instalações para porcos com mais de sete andares. Temos que melhorar o sistema, e não transformá-lo radicalmente, o senhor entende? Ao senhor, falta-lhe sensatez!

– Realmente, eu estou perplexo! – respondeu João.

– Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia dizendo por ai que pode resolver tudo. O problema é bem mais sério e complexo do que o senhor imagina. Agora, entre nós, devo recomendar-lhe que não insista nessa sua idéia – isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. Não por mim, o senhor entende. Eu falo isso para o seu próprio bem, porque eu o compreendo, entendo perfeitamente o seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menos compreensivo, não é mesmo?

João Bom-Senso, coitado, não falou mais um “A”. Sem despedir-se, meio atordoado, meio assustado com a sensação de estar caminhando de cabeça para baixo, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu.

Por isso é que até hoje se diz, quando há reuniões de Reforma e Melhoramentos, o que falta é o Bom-Senso.

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