Os Saberes do Educador que Educa

O texto a seguir foi originalmente escrito em 2003, quando eu fazia o 1º ano do curso de Pedagogia. Fiz algumas pequeníssimas modificações para publicar aqui, em vista da experiência adquirida nos últimos anos, mas o texto é ainda basicamente o mesmo, de forma que muitos pensamentos aí expressos, talvez hoje seriam escritos de outra forma, mas preferi deixar como estava para não ter que reescrever todo o texto.

Ei-lo…


Cultura é tudo!

Antes de falarmos especificamente dos saberes da docência, vamos tecer alguns comentários sobre os saberes da humanidade, que podem ser resumidos em uma palavra: Cultura.

O professor e filósofo Ildeu Moreira Coêlho, da Universidade Federal de Goiás, elucida de forma bastante abrangente o que é Cultura, ao afirmar que se trata de um “conjunto de esquemas interpretativos e explicativos do mundo, (…) estruturados sob forma de costumes, hábitos, mitos, crenças, instituições, língua, letras, artes, filosofia, ciências e técnica” (2003).

Ao dominar a própria cultura, o homem se insere no mundo e se torna sujeito atuante e transformador da realidade, portanto sujeito histórico. Compreender a cultura é dar significado ao mundo.

Entendendo a Educação como a prática pela qual a cultura humana se transforma, progride e se perpetua, os saberes que o Educador abarca devem ser bastante amplos. Ele deve saber auxiliar o educando em sua inserção no universo cultural da humanidade, tornando-o ciente, analista e agente transformador da inteligência, da imaginação, da ação e do conhecimento humanos. Desta forma, o educando constrói sua própria natureza humana: torna-se sensível ao conhecimento.

Quebra-cabeça cultural

Infelizmente a cultura humana foi fragmentada (principalmente a partir do século XVIII). Os conhecimentos foram divididos e separados em áreas específicas. Apareceram os especialistas: cientistas e técnicos que sabem muita coisa de muito pouco e muito pouco de muito coisa. Os educadores tendem a fazer o mesmo: delimitar os saberes da docência.

Veja que a discussão é longa e sem esperança de conclusão, mas o que quero chamar a atenção é para o perigo de estabelecer limites muito rígidos aos saberes docentes: “é isso que o professor tem que saber, e só”. Não quero também dizer que o docente deva ter um saber infinito, apenas quero dizer sem fronteiras, portanto ilimitado. Muitos professores no entanto têm confundido os saberes próprios da docência com os conteúdos próprios das disciplinas. Mas a questão é mais profunda. Não falaremos aqui de conteúdos de disciplinas (regidas por especialistas), mas de conhecimentos e atitudes que devem ser próprias de um professor.

Vamos entender melhor:

Os saberes da Engenharia, por exemplo, são saberes já delimitados. Por isso não se discute, na Engenharia, quais são os seus saberes. Isto se clareia à medida que o curso de graduação prossegue. Mas seria possível um engenheiro civil, por exemplo, construir um aeroporto só porque é engenheiro civil? Não! Ele precisa entender um mínimo de aeronáutica e de tráfego aéreo (até para conversar com quem entende). E o médico? Tem ele que conhecer só o corpo, seu funcionamento e suas patologias? E quem vai operar o aparelho de ressonância magnética, o eletrocardiógrafo, o desfibrilador? Ele precisa saber, por exemplo, que o gel condutor, que é usado nos contatos do desfibrilador (aquelas pás metálicas que vão ao tórax do paciente quando este tem uma fibrilação cardíaca) para diminuir a resistência elétrica da pele, não pode secar (deve-se limpar as pás após o uso). Mas já vi casos de médicos e enfermeiros não obedecerem a esta regra, não sabem alguns deles que quando o gel seca, ele se torna um isolante (função oposta do condutor) e muitas vezes a pá do desfibrilador, que dá um choque de alguns milhares de volts no paciente, pode acabar funcionando como um bisturi elétrico, causando lesões muitas vezes profundas. Assim também, um engenheiro que projeta um monitor cardíaco precisa saber como funciona o coração e as componentes elétricas envolvidas no batimento cardíaco. E um sociólogo, ou um antropólogo, que pretende estudar a evolução das sociedades humanas desde o primeiro homo sapiens, precisa entender de genética e psicologia? Vejam que, em nenhuma área do conhecimento humano, o cientista deve ficar bitolado nos saberes de sua formação inicial. Os saberes precisam ser articulados.

No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, para citar um exemplo, fala-se do ensino de música. Está claro que, para isso, o educador precisa entender de música. Obviamente não como um músico entende, mas precisa saber um mínimo.

Neste ponto, concordamos que o Educador deva saber de tudo um pouco. Principalmente o Pedagogo que trabalha com Educação Infantil e com o Ensino Fundamental. A criança pergunta porque o gelo derrete, e ela não quer saber se esse conhecimento é da alçada da Química ou da Física, ela só quer saber porque o gelo derrete! E se o professor não sabe? Pesquisa! Busca a resposta junto com seu aluno, sem ficar no senso comum, mas mergulhando até onde o aluno queira desbravar.

Temos visto alguns professores falarem sobre a Pedagogia de Projetos, algo essencialmente interdisciplinar, e me pergunto: quais seriam os saberes envolvidos na prática do pedagogo nesta perspectiva de ensino? Os conteúdos de suas disciplinas apenas? A questão é que a criança não fragmenta o conhecimento, ela o articula, mesmo que precariamente. A criança filosofa! A tentativa de delimitar o saber do docente, do ponto de vista dos conteúdos, pode ser uma tentativa de fragmentar ainda mais o seu conhecimento e, conseqüentemente entravar sua prática.

Por conta também desta fragmentação, a escola e o professor dentro dela têm se preocupado excessivamente em preparar o estudante para o mercado de trabalho ou para o vestibular, esquecendo-se de prepará-lo para a vida, ou melhor, vivenciar a vida na escola. Injetam, cada um isoladamente da cátedra de sua disciplina, uma overdose de informações descontextualizadas nos alunos com vistas a um demônio chamado vestibular, que não tem outra função senão pressionar recém-adultos a escolherem a profissão que querem exercer pelo resto de suas vidas. Pior: ao quererem competir com a mídia (televisiva principalmente), transformam a sala de aula num circo de piadinhas sem graça, alienando os alunos com conteúdos desprovidos de criticidade. Daí o melhor professor passa a ser aquele que transmite o maior número de informações ao maior número de alunos no menor tempo: característica de muitos cursinhos.

Cabe aqui citar algumas palavras importantes do professor Ildeu (2003):

Ora, a circulação e a transmissão de experiências, informações e conteúdos e a formação de consumidores de cultura são realizadas pela mídia, com rapidez, eficiência e sob a forma do lúdico, do lazer, da diversão e do entretenimento. A Internet, por exemplo, armazena, faz circular e torna disponível, para quem quiser e tiver condições de acessá-la, uma quantidade e variedade praticamente ilimitadas de conteúdos e informações. As empresas também podem “treinar” e “reciclar” mão-de-obra com rapidez e eficiência, formar profissionais capazes de desempenhar bem determinadas tarefas, desembrulhar e executar pacotes tecnológicos oriundos dos grandes centros universitários e empresariais de pesquisa e de criação de produtos. Para realizar essas e outras tarefas, a sociedade não precisa da escola nem da universidade que, em momento algum, pode pretender competir com a mídia, sob pena de se desqualificar institucionalmente, perdendo sua identidade e razão de ser. (…). Mas, pensar, interrogar o sentido, os limites, as possibilidades, os pressupostos e as implicações de tudo isso e, sem se perder na superficialidade e na banalização do saber, ir à raiz dessas realidades e questões, é um trabalho específico da escola.

Depois disso tudo, quais seriam os saberes envolvidos na docência? Não vamos entrar no mérito dos conteúdos… pelo menos não agora.

Antes de darmos nossa opinião, porém, vamos conhecer as idéias, de forma não muito aprofundada, de dois diferentes autores sobre estes tão aclamados (e procurados) saberes: Dermeval Saviani e Maurice Tardif.

Saviani define os saberes implicados na formação do educador

Para Dermeval Saviani (1996), “a educação é um fenômeno específico dos seres humanos, a compreensão de sua natureza passa pela compreensão da natureza humana”.  E nessa perspectiva, ele configura os saberes que todo docente deve dominar, quais sejam:

  • Saber atitudinal: disciplina, pontualidade, coerência, clareza, justiça e eqüidade, diálogo, respeito às pessoas dos educandos, atenção às suas dificuldades etc.;
  • Saber crítico-contextual: compreensão das condições sócio-históricas que determinam a tarefa educativa, ou seja, do contexto com base no qual e para o qual se desenvolve o trabalho educativo;
  • Saberes específicos: saberes correspondentes às disciplinas em que se recorta o conhecimento socialmente produzido e que integram os currículos escolares;
  • Saber pedagógico: conhecimentos produzidos pelas ciências da educação e sintetizados nas teorias educacionais;
  • Saber didático-curricular: domínio do saber-fazer.

Saviani não fala dos saberes da experiência, como veremos em Tardif, por defender a idéia de que este saber “não se trata aí de um conteúdo diferenciado dos demais, mas de uma forma que pode estar referida indistintamente aos diferentes tipos de saber”. Também não fala do “saber lidar com gente”.

Por fim, deixa claro que estes saberes se articulam com objetivos propriamente pedagógicos, com fins de transformar, qualitativamente, a inserção do educando na prática social.

Tardif: os saberes são plurais, compósitos, heterogêneos

O primeiro problema com o qual Maurice Tardif (2002) se depara ao tentar circunscrever os saberes da docência é a própria noção de saber. Depois disso, viu-se a dificuldade em comparar e articular distintos e “incomparáveis” saberes, como os que tratam de fenômenos sociais, de princípios epistemológicos, de correntes de pesquisa ou de modelos ideais. Dessa forma, organizou os saberes com base em suas origens sociais, abrangendo melhor a diversidade dos saberes dos professores.

O quadro a seguir “propõe um modelo tipológico para identificar e classificar os saberes dos professores”.

Saberes dos professores

Fontes sociais de aquisição

Saberes pessoais dos professores

A família, o ambiente de vida, a educação no sentido lato, etc.

Saberes provenientes da formação escolar anterior

A escola primária e secundária, os estudos pós-secundários não especializados, etc.

Saberes provenientes da formação profissional para o magistério

Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem, etc.

Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho

A utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas, etc.

Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola

A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares, etc.

Caracteriza, ainda, o saber docente como um saber sincrético, uma mistura de concepções heterogêneas, mas que se mantêm distintas, por não haver aí uma unidade teórica, já que um mesmo professor tem mais de uma concepção da própria prática. Nisso Tardif está diametralmente oposto a Saviani, que afirma o saber docente como um conhecimento sintético (Saviani, 1996), ou seja, como um sistema mentalmente construído, exatamente por implicar uma certa articulação entre os diversos saberes, criando, portanto, uma unidade teórica.

E agora? O que o docente precisa saber?

Como vimos, analisando os dois autores, os saberes identificados por ambos têm nomes diferentes, são convergentes em alguns momentos e divergentes em outros. Não nos cabe criticar negativamente esses dois autores, por não nos encontrarmos em iguais condições de argumentação. Muito pelo contrário, são tentativas louváveis de identificar e esclarecer os saberes do educador, com vistas a uma maior valorização da prática docente, por parte inclusive do próprio professor. Sem negar nenhum dos saberes expostos por Saviani e Tardif, vejamos qual poderia ser a nossa contribuição.

“Mais do que darmos nomes às coisas, é preciso falar das coisas” (Platão)

Mais importante do que delimitar o saber docente é saber, não qual, mas o que é este saber. É preciso, primeiro, compreender o papel do professor como agente de transformação social, a importância de sua ação no mundo e como ele o faz.

Vamos refletir um pouco sobre isso…

Os filósofos antigos, e nos remontamos aos gregos pós-socráticos, eram filósofos completos, eram holistas, discutiam política, educação, vida social (sociologia), vida mental (psicologia), matemática, geometria, astronomia, a natureza (do ponto de vista da física, da química e da biologia), o corpo humano, a arte e ainda tinham tempo para falar dos mitos e da religião!

Sua produção cultural, há 2500 anos, foi tão intensa e tão marcante que não nos livramos dela até hoje! A cultura clássica grega é a base da cultura do mundo ocidental contemporâneo.

Estamos falando dos filósofos antigos somente para exemplificar os saberes de quem educa.

Avançando um pouco no tempo, deitemos nossos olhares imaginativos sobre Leonardo da Vinci. Leonardo era excelente anatomista, grande físico, incomparável pintor e escultor, dono de uma sabedoria e inteligência inigualáveis, era ainda fabuloso cientista, pesquisador, inventor. Mais ainda, era astrônomo e matemático. Um grande esteta. Era, em um só termo, um ser humano integral, com a mente inquieta a questionar tudo a sua volta, a querer saber os porquês das coisas. O fato é que todos nós nascemos Leonardos, como afirma Rubem Alves (1994), mas para a escola e para os professores de hoje, “todo Leonardo deve se transformar em funcionário, toda borboleta deve se transformar em lagarta, todo campo selvagem deve se transformar em monocultura”. Vamos imaginar esta criança chamada Leonardo da Vinci sendo educada pelos professores de hoje. Meu Deus, cortar-lhe-iam as asas!

A formação do homem, em termos de autonomia, liberdade, criticidade, inteligência, imaginação e sensibilidade, passa pela ampliação de seus horizontes de conhecimento, através da cultura como um todo, e não de forma fragmentada. E falamos de cultura naquele sentido exposto no início do texto.

A escola, hoje, por força do mercado e contando com o consentimento de sua comunidade educativa, tem “produzido” uma grande quantidade de homo genericus, seres humanos produzidos em larga escala, como numa linha de montagem, para o mercado de trabalho (trabalho estranhado e desgastante), alienados e monofuncionais, com horizontes bastante estreitos. Para onde foram os homo sapiens, homens sábios, homens que sabem?

Então precisamos entender o educador como aquele que deve ter a capacidade de evocar do educando a curiosidade e o interesse pelo conhecimento, deve auxiliá-lo a ser autônomo, racional, ético, criativo e dono do próprio destino. Tudo isso a partir, principalmente, do exemplo próprio. Portanto, o professor precisa ser autônomo, racional, ético, criativo, deve estar aberto a novos conhecimentos, deve ter consciência plena do ofício de educar. Isso deve estar incluso em seus saberes.

Também precisamos compreender que este saber não é “algo pronto e acabado, nem os professores são seus proprietários” (Coêlho, 2003). O saber é universal e dinâmico, o que faz com que educadores e educandos o construam continuamente, no processo de ensino/aprendizagem.

O raio do saber e a área da ignorância

Um dos saberes mais importante, e talvez o primeiro deles, implicados na prática docente, é o conhecimento de si mesmo. Pode parecer balela falar em auto-conhecimento num texto sobre a prática docente, mas sem isso o professor se torna cego em sua prática e não compreende aquele feedback que é dado pelos alunos e pela comunidade. Não percebe, por exemplo, quando está faltando com a humildade perante o aluno, pois não conhece a dimensão do próprio orgulho.

É necessário que o professor não somente tenha domínio dos próprios saberes, como também conheça a própria ignorância.

Um professor que eu tive no curso de Engenharia Elétrica costumava dizer que o nosso saber é como um segmento de reta, cada ser humano na Terra tem um saber com um comprimento diferente (não o saber específico, mas o saber aqui como o conjunto dos conhecimentos adquiridos). Então o saber do professor tem um comprimento específico, mas transitório. Acontece que este segmento de reta é na verdade o raio de uma circunferência, e a área dessa circunferência indica a expansão de sua ignorância. Ignorância no sentido de não saber mesmo!

O Raio do Saber e a Área da Ignorância

O Raio do Saber e a Área da Ignorância

Estamos no centro, o raio é nossa visão para frente, o seu comprimento é até onde vão os nossos horizontes de conhecimento. Mas só percebemos a área em volta quando abrimos a mente. Então percebemos que não sabemos tudo. O professor orgulhoso, de mente fechada, só vê o próprio saber, não tem noção daquilo que não conhece, não sabe a dimensão do desconhecido, não vê a própria ignorância. Se não percebemos a área à nossa volta, acreditamos já sabermos tudo. Sócrates percebeu a imensa área ao seu redor, foi por isso considerado pelo oráculo de Delfos como o homem mais sábio.

Quando se trabalha por transformar a ignorância em conhecimento, o raio aumenta, porém a área também. Isso significa que, embora a sabedoria plena seja inalcançável, o saber é dinâmico e progressivo, desde que abramos nossas mentes. É claro que esta área diz respeito àquilo que já sabemos que ignoramos, ou seja, àquilo que temos consciência de que não conhecemos, isto quer dizer que o que existe além das fronteiras dessa circunferência, nós ignoramos até mesmo que ignoramos.

Trata-se apenas de uma analogia para que não nos tornemos nem arrogantes, nem soberbos, nem orgulhosos com relação àquilo que já sabemos, pois quanto mais conhecemos as coisas, mais percebemos o quanto ignoramos.

Quando ignoramos algo, podemos cometer erros. E quando cometemos um erro, este denota nossa ignorância. Mas isso não é ruim, muito pelo contrário, errar é humano. Tudo depende de como interpretamos nossos erros, podemos daí estacionar ou progredir, pois o erro é apenas o ensaio do acerto. Só se evita um erro quem já o cometeu antes, ou viu alguém cometer e compreendeu o fato. Por isso o conhecimento sempre pode (e deve) ser aprimorado. E o conhecer (não o conhecimento morto, que gera matéria mórbida mental, mas o ativo) nos permite fazer escolhas com liberdade.

O amor pelo saber e o desejo de mudança

O Educador “precisa dominar os saberes implicados na educação” (Saviani, 1996), precisa saber em que consiste a educação e precisa ser antes educado.

Perguntamos o que leva alguém a fazer um curso de Pedagogia. Se a resposta for algo do tipo: “Fiz porque odeio matemática!”, já começou errado, pois pretende ser um educador e, no entanto, odeia um saber construído pela humanidade. Não pode haver ódio por saberes. Um professor de química que odeia sociologia, ou um professor de história que odeia física poderão até ser bons “profissionais”, mas serão educadores incompletos. Portando um outro saber implicado na prática docente é o amor pelo saber: Filosofia.

Falamos isso por compreender que educação é algo muito mais amplo que transmissão de conteúdos que “caem” no vestibular. Educar é proporcionar o auto-conhecimento e a chance de beber livremente na eterna fonte do conhecimento que é a vida. Citamos mais uma vez o professor Ildeu (2003):

Educar é trabalhar para que a cultura, a razão, o pensamento, a autonomia, a liberdade, a democracia e a solidariedade se tornem valores fundamentais para educandos e educadores, estudantes e docentes, enfim, para que os atuais humanos e as gerações futuras participem efetivamente da invenção de uma nova humanidade, de uma nova sociedade, de uma nova cultura, de um novo homem. Caminhar nesse sentido deve ser, então, um valor fundamental e primeiro de nossa existência, o que colide frontalmente com o culto do indivíduo, dos bens materiais, do imediato, do prazer, do poder, da fama.

Mas para educar assim, o professor precisa ser assim. Precisa amar o saber.

Não é fácil, sabemos, acreditar numa nova humanidade como propõe o professor Ildeu, numa organização social justa, igualitária, democrática, livre e amante do saber. Os interesses capitalistas, as ambições pessoais e territoriais, o orgulho, o egoísmo, a maldade, o crime, o castigo, a inimizade, a traição dificultam esse entendimento. É preciso livrar-se disso para entender, desejar e construir uma sociedade feliz. Assim, o desenvolvimento cultural, tecnológico e científico terá valores e significados bem mais amplos. Temos, então mais um saber envolvido na docência: desejo de mudança.

Os atuais cientistas da educação estão eternamente em conflito consigo próprios. Elaboram explicações detalhadas sobre assuntos pedagógicos, mas não se dispõem a sair de onde estão, a mudar. Tive professores que explicavam brilhantemente o contexto de uma sala de aula de ensino fundamental sem nunca terem entrado numa como regente.

Mas enfim, do exposto até aqui, temos três saberes além dos apontados por Saviani e Tardif, que são: conhecimento de si mesmo, amor pelo saber e desejo de mudança. Isso pode compor, provisoriamente, o quadro de saberes do docente decente. Acrescentaríamos ainda aqueles quatro pilares da educação apontados por Jacques Delors [http://4pilares.net/text-cont/delors-pilares.htm] como necessários não somente aos educandos, mas também aos docentes: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser.

Um apontamento nostálgico

Numa época em que os valores da vida estão expostos de maneira extremamente confusa, numa época de consumismo ferrenho e de uma moral estranha que o justifica, mas também de tentativa de reaver os reais valores morais, há muito corrompidos, por parte de alguns educadores, é preciso “resgatar alguns pontos perdidos, que dão consistência ao sujeito, à ação humana e à existência” (Incontri, 2003). Para darmos um único exemplo e não mais nos alongarmos nesta questão, citamos Comenius:

Nosso primeiro desejo é que todos os homens sejam educados plenamente, em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens, reunidos e individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento elevado e humilde – numa palavra, qualquer um cujo destino é ter nascido ser humano; de forma que afinal toda a espécie humana seja educada, homens de todas as idades, todas as condições, de ambos os sexos e de todas as nações. Nosso segundo desejo é que todo homem seja educado integralmente, formado corretamente, não num objeto particular ou em alguns objetos ou mesmo em muitos, mas em tudo o que aperfeiçoa a espécie humana; para que ele seja capaz de saber a verdade e não seja iludido pelo que é falso; para amar o bem e não ser seduzido pelo mal; para fazer o que deve ser feito e não permitir o que deve ser evitado; para falar sabiamente sobre tudo, com qualquer um, quando necessário, e não ser estúpido em nenhum assunto e finalmente para lidar com as coisas, com os homens e com Deus, em todos os sentidos, racionalmente e não precipitadamente e assim nunca se afastando da meta da felicidade. (Covello, 1999)

Omnes Omnia Omnino (Tudo a Todos Totalmente), era o que preconizava o nobre educador checo, há mais de 350 anos. E hoje ainda falam de interdisciplinaridade como se fosse uma novidade!

Entendemos que situar o Verdadeiro Educador dessa forma, ou seja, como co-construtor da cultura, agente de mudanças e auxiliador do educando nesse processo, e a Educação como a prática pela qual a cultura é (re)construída, fica mais fácil falar dos saberes envolvidos em sua formação e em sua prática docente. Não no intuito de delimitá-los, pelo contrário, de ampliá-los. Não queira o educador se colocar no mundo apenas como o professor de tal disciplina, é preciso ir além…

Talvez o único saber que é próprio do educador seja o saber educar.

Referências Bibliográficas

ALVES, Rubem. A Alegria de Ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1994.

COÊLHO, Ildeu Moreira. A Educação, a Cultura e a Invenção de uma Outra Escola. Trabalho apresentado no VI Encontro de Pesquisa em Educação da Região Centro-Oeste. Campo Grande – MS, 2003.

COVELLO, Sergio Carlos. Comenius: a Construção da Pedagogia. São Paulo: Editora Comenius, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

INCONTRI, Dora. A Crise do Saber e os Clássicos da Educação. In: Revista Internacional d’Humanitats, n. 6, 2003. http://www.hottopos.com/rih6. Acesso em: 6 jun 2003.

SAVIANI, Demerval. Os Saberes Implicados na Formação do Educador. Trabalho apresentado no IV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores. Águas de São Pedro – SP, 1996.

TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Rio de Janeiro: Vozes, 2 ed. 2002.

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